Wild Hearts é digno de coexistir com a franquia que o inspirou
Apesar de reproduzir fielmente as mecânicas da obra da Capcom, Wild Hearts adiciona poucas, porém boas ideias à fórmula
uem é fã sabe: Monster Hunter sempre foi a experiência definitiva de caçar monstros. Diversas empresas se atreveram a tentar replicar a fórmula da franquia da Capcom, mas nenhuma foi capaz de reproduzi-la com o carinho que os adeptos do gênero esperavam. Toukiden, God Eater e Dauntless, por exemplo, só para citar alguns nomes, não passam de bons jogos.
Com a explosão de popularidade de Monster Hunter: World no ocidente e, posteriormente, com o lançamento do convidativo Monster Hunter Rise em 2021, era só uma questão de tempo até começarmos a ver produtos de estúdios consagrados propondo aventuras semelhantes — e quando se trata de Monster Hunter, quanto mais, melhor.
Pode-se dizer que Wild Hearts, desenvolvido pelo experiente estúdio japonês Omega Force, criador de Dynasty Warriors, seja o primeiro grande título ao estilo Monster Hunter, até aqui o único com qualidade o bastante para bater de frente com a série que o influenciou. Muitos souls-likes e metroidvanias depois, é provável que estejamos diante de uma promissora onda de “Monster Hunter-likes”, o que me deixa com um sorriso de orelha a orelha só de imaginar.
Mais uma ótima representação do Japão feudal
Para alguém que nunca sequer ouviu falar em Monster Hunter, dá para dizer, usando poucas palavras, que Wild Hearts é um RPG de ação em terceira pessoa situado num mundo inspirado no Japão feudal. Por aqui, o seu objetivo é, em suma, caçar monstros colossais para confeccionar equipamentos poderosos à medida que progride na jornada.
Em Wild Hearts, criamos um personagem do zero, com características próprias, para assumir o papel do desertor de um clã de samurais em seu desejo de superar o passado. O nosso herói, porém, passa a ser visto como uma espécie de salvador para proteger o povo de Azuma, a Terra do Leste, sendo recebido de braços abertos na Vila Minato por dominar a Karakuri, uma tecnologia ancestral tida como extinta.
É graças à tecnologia Karakuri que o nosso protagonista ganha fôlego para encarar os Kemono (assim mesmo, no singular, como Pokémon), as feras gigantes que ameaçam devastar o lugar. Você pode não ter se dado conta até então, mas o Karakuri é o principal elemento do game e o que justifica a existência de muitas das mecânicas únicas de Wild Hearts — fique tranquilo porque ele será explorado mais adiante no texto.
Em termos de história, não há nada de fascinante acontecendo a ponto de deixar o jogador ansiando por mais cutscenes, mas ela faz o que precisa ser feito para contextualizá-lo e envolvê-lo no ciclo de caça. Você vai, inclusive, se deparar com algumas das cenas mais técnicas e caprichadas que a produtora de Dynasty Warriors pôde ostentar em seu currículo, com destaque às feições dos personagens.
Preciso confessar que gostei bastante dos diálogos (a propósito, todos em português do Brasil) em que os aldeões detalham os contos da região e abordam a conexão espiritual dos monstros com Azuma — na verdade, sou suspeito a falar sobre obras que buscam influências no folclore japonês. O cuidado que a Omega Force teve ao criar o pano de fundo de Wild Hearts é algo que poucos estúdios se dão ao trabalho de ter.
Karakuri: a principal atração de Wild Hearts
O ritmo de desferir golpes, o esquema de sacar e guardar a arma e até o jeito de andar meio “travado” foram 100% herdados de Monster Hunter e, portanto, tornam o combate extremamente satisfatório. Se eu precisasse resumir Wild Hearts em apenas uma frase, diria que ele é uma versão menos burocrática de Monster Hunter, embora Monster Hunter Rise, o mais recente, tenha descomplicado muita coisa.
Isso porque há um número substancialmente menor de itens para se coletar e menos sistemas a serem absorvidos de início. Não só isso: você pode ir direto ao ponto nas missões, sem perder tempo na etapa de preparação, o que é ótimo para caçadores impacientes, e ainda ter à disposição o sistema de Karakuri, a principal atração do título.
Você vai usar as habilidades de Karakuri para praticamente tudo: caçar, se locomover, explorar e compor os mapas com suas próprias invenções
Com o auxílio das criações de Karakuri, você projeta ferramentas essenciais ao gameplay, como trampolins, armadilhas e outras parafernálias — tudo ao alcance de poucos botões. Além disso, pelo fato de termos uma exploração bastante vertical, há como construir estruturas a fim de agilizar a navegação pelo mundo, incluindo um vasto leque de gadgets, dos planadores e ventoeiros às tirolesas.
De certa forma, o Karakuri cumpre uma função parecida com a do Cabinseto, o acessório de combate introduzido em Monster Hunter Rise, ainda que a tecnologia de Wild Hearts, no sentido de dar novas opções ao jogador, seja mais completa. Tanto que temos uma gigantesca árvore dedicada às criações de Karakuri, com dezenas, quase centenas de habilidades a serem destravadas.
A primeira impressão que tive é de que o uso das técnicas de Karakuri não parece ser uma boa adição às mecânicas, tendo em vista que você precisa abrir uma roda de itens no calor da batalha, podendo ficar temporariamente vulnerável às investidas inimigas. No entanto, é tudo uma questão de adaptação e você logo vai estar montando objetos à la Fortnite sem nem pensar, no “automático”. O mais bacana de tudo isso é que você literalmente molda os ambientes à sua maneira ao adicionar caixotes, objetos de atalho, torres de caça e por aí vai.
Aliás, quando você estiver jogando no modo cooperativo para até três jogadores, seus aliados poderão usufruir de todos os recursos que você instalou durante a jogatina, promovendo bons momentos de interação. Por falar nisso, o co-op é bem mais objetivo que o de Monster Hunter, podendo ser acionado a qualquer hora sem exigir que o jogador acesse o menu de pausa ou algum item específico armazenado no inventário.
Ciclo viciante de caça e um robusto sistema de forja
Sem surpresas, o ciclo de gameplay funciona como em um Monster Hunter: você aceita contratos de caça de diferentes níveis a partir da base, aniquila o seu alvo e retorna à Vila Minato para forjar equipamentos melhores.
Trata-se de um loop viciante em que a repetição se faz necessária, pois você nem sempre será capaz de obter as partes relevantes de um Kemono para se produzir a peça que almeja. Está precisando de uma cauda? Repita a missão e foque no rabo do bicho. Apesar de não funcionar bem para todos os armamentos, aqui temos uma trava de mira a ser usada em criaturas maiores, facilitando de modo considerável a dinâmica de farmar componentes raros e valiosos.
Com relação à variedade de armas, o título oferece oito tipos, com opções para todos os gostos e perfis. O arco, também presente em Monster Hunter desde o segundo game, foi de longe o equipamento que mais usei, justamente por conceder grande manobrabilidade.
O catálogo pode não ser tão amplo, é verdade, mas saiba que todas as armas, sem exceção, têm mais de uma transformação, além de cada uma ter uma imensa árvore destinada à forja. O Bastão Karakuri, por exemplo, é conhecido por ter cinco formas e ser a escolha mais “universal”, enquanto o Canhão de Mão é controlado por dois medidores e serve ao caçador que prefere brigar de longe.
Devo dizer que fiquei admirado com as diferentes fases de cada arma e seus níveis de intuitividade. Para você ter uma ideia da densidade do sistema de armas, cada monstro do jogo é capaz de render mais de um modelo, cada qual com seu dano elemental.
Um outro aspecto marcante de ser comentado é que Wild Hearts dá ao jogador a flexibilidade de seguir caminhos distintos na criação das armaduras. Ao ser fabricado pelo Caminho Humano, o equipamento ganha um conjunto de habilidades que você não veria se o tivesse criado pelo Caminho Kemono. O mais legal, contudo, é apreciar as skins estilosíssimas que podemos fazer, não devendo em nada para Monster Hunter nesse quesito.
Poucos monstros emblemáticos, cenários densos e dificuldade
Embora carregue algumas características iguais ou até superiores à franquia Monster Hunter, Wild Hearts acaba “patinando” em um repertório limitado de monstros, a meu ver uma ressalva grave por seguir à risca uma fórmula que estimula a repetição. Precisamos refletir sobre o seguinte: se temos poucas criaturas, o ato de repetir vai se desgastar muito cedo, certo?
A própria desenvolvedora do jogo havia se pronunciado em relação ao assunto dizendo que, ao menos em sua janela de lançamento, a ideia seria colocar “qualidade acima de quantidade”. Até aí tudo bem. O problema é que Wild Hearts não se destaca em nenhuma das duas frentes, nem em qualidade, nem em quantidade.
No que diz respeito ao design, os Kemono representam animais inspirados no folclore japonês, mas fundidos com elementos da natureza, uma combinação que tinha tudo para dar certo — e em certos casos até deu.
Consigo citar alguns poucos monstros memoráveis, como o Dorso-de-lava, um gorilão formado de rochas com uma aparência de Guardião Primata, o brucutu de Sekiro: Shadows Die Twice, e o Espreitador da morte, um lobo revestido de gelo que empresta seu rosto à capa do game.
De resto, o que vemos são designs genéricos, tal como o dos animais roedores, Roeflor e Roesporo, e criações poucos inspiradas, vide o Ornitóxico, um pássaro sombrio cuja principal particularidade é envolver sua presa em um miasma tóxico. Se você, assim como eu, já traz uma bagagem de Monster Hunter, é provável que dê de ombros para muitas das feras disponíveis aqui.
Já em relação aos mapas, não há do que reclamar: Wild Hearts, tal qual Monster Hunter: World, apresenta um rico ecossistema daqueles que poucos títulos conseguem entregar. Dos templos budistas aos monumentos baseados no Castelo de Himeji, há inúmeras inspirações japonesas em Azuma, que contrastam de maneira harmônica com os Kemono.
O level design, por sua vez, parece ter sido projetado como um quebra-cabeça: tudo se encaixa; nada está ali por acaso. Por mais que tenhamos visto algo semelhante em Monster Hunter: World e Monster Hunter Rise, não há como não se encantar com a densidade dos cenários de Wild Hearts, posto que você tem como interagir com quase todos (senão todos) os seus recursos visuais.
Sobre a dificuldade, não posso deixar de pontuar o quão desbalanceada ela se torna a quem pretende desbravar a jornada sozinho. Como as missões têm tempo para serem concluídas, e o jogador só tem três chances numa mesma caçada, ainda que possa ser revivido por um de seus parceiros sem desperdiçar a “vida”, a tarefa de matar os Kemono mais agressivos quase sempre se converte em frustração.
A ajuda de um time, goste você ou não de jogar acompanhado, é mais que recomendada. Em Monster Hunter, por exemplo, a dificuldade não escalona com a mesma rapidez de Wild Hearts, tanto que as missões verdadeiramente desafiadoras são as que ficam na lista de High Rank, e não nos segmentos de nível baixo da história.
Abaixo do que se espera, tecnicamente falando
Mesmo digno de elogios pela construção de seu mundo, Wild Hearts comete deslizes grosseiros em sua execução, que ficam ainda mais evidentes se pararmos para pensar que se trata de um jogo disponível apenas para os consoles da atual geração e PC. Seja sozinho ou com outros caçadores, prepare-se psicologicamente para esbarrar em muitos glitches visuais e quedas constantes de frames — se bem que as últimas atualizações deram uma boa otimizada no desempenho.
Ademais, o jogo conta com dois modos de qualidade gráfica: desempenho e resolução. Na prática, entretanto, o desempenho não entrega uma taxa de quadros estável, e a alternativa para elevar a resolução não assegura o “filtro” que o game precisava ter para realçar a beleza de suas paisagens. No fim das contas, o melhor a fazer é deixar a opção de desempenho habilitada e torcer para que futuros patches deem uma revigorada na parte técnica.
Veredito
Intimidante à primeira vista, Wild Hearts é um ótimo jogo de caçar monstros, reproduzindo fielmente as mecânicas que deram certo na obra da Capcom, ao mesmo tempo em que tenta implementar um pouco de suas próprias ideias. Apesar das limitações, é seguro afirmar que esta nova entrada, fruto de uma parceria inusitada entre EA e Omega Force, seja digna de coexistir com a principal franquia que a inspirou.
Mais que uma aposta da EA pelo selo EA Originals, Wild Hearts talvez simbolize algo muito maior à indústria: a tendência de um novo subgênero — quem sabe a moda do Monster Hunter-like pegue de vez. Fico feliz que um jogo como esse tenha sido lançado, pois concorrência no mercado é algo saudável e quem ganha somos nós, consumidores — afinal, Monster Hunter está há tempos confortável demais em seu trono.
Wild Hearts foi gentilmente cedido pela EA para a realização desta análise, feita no PS5.
Wild Hearts
Publisher: Electronic Arts
Desenvolvedora: Omega Force/Koei Tecmo
Plataformas: PS5, Xbox Series X|S e PC
Lançamento: 16/02/2023
Tempo de review: 35 horas
Wild Hearts é um ótimo jogo de caçar monstros: reproduz fielmente mecânicas que deram certo na obra da Capcom ao mesmo tempo em que implementa boas ideias
Prós
- Técnicas de Karakuri são excelente adições ao gameplay
- Combate à altura de Monster Hunter
- Grande variedade de equipamentos a serem forjados
- Mapas densos e convidativos à exploração
- Mecânicas simplificadas podem atrair novatos à fórmula
Contras
- Dificuldade desequilibrada atrapalha experiência solo
- Deixa a desejar na parte técnica
- Temos poucos monstros realmente memoráveis
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